T Ó P I C O : Café e poder: a longa história do grão que os governos insistem em controlar
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Café e poder: a longa história do grão que os governos insistem em controlar
Autor: Leonardo Assad Aoun
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Último comentário neste tópico em: 09/12/2025 18:42:27
Leonardo Assad Aoun comentou em: 09/12/2025 19:06
Café e poder: a longa história do grão que os governos insistem em controlar
Por José Caetano, especial para a Gazeta do Povo
Do Convênio de Taubaté ao tarifaço de Trump: o café sempre está no centro da geopolítica (Foto: José Fernando Ogura/AEN-PR)
O café voltou a ser o personagem central de uma história que mistura economia, política e geopolítica — agora nas mãos de Washington, assim como um dia esteve nas mãos da oligarquia cafeeira brasileira em Taubaté.
Mais de um século separa o Convênio de Taubaté das tarifas impostas, e depois parcialmente retiradas, pelo presidente Donald Trump sobre o café brasileiro. Mas em ambos os casos, a intervenção do Estado cobrou um preço alto de produtores e consumidores.
A associação entre café e tensões geopolíticas não é nova. Depois da Festa do Chá de Boston, em 1773, o boicote ao chá britânico abriu espaço para que o café se tornasse, ao longo das décadas seguintes, a bebida associada à afirmação da nova República americana, em contraste com os símbolos da metrópole.
Cafés e tabernas das colônias foram se consolidando como lugares de debate político, enquanto a troca do chá pelo café traduzia, na rotina, a rejeição a impostos vistos como abusivos e à interferência britânica.
Autores como Michael Pollan e Tom Standage afirmam que a cafeína foi o grande combustível de revoluções e do próprio Iluminismo. Sendo o café mais rico em tal molécula que a bebida britânica, é possível dizer que o chá pôde ser lançado ao mar porque já havia, na xícara, um substituto à altura.
Esse novo costume teve consequências econômicas duradouras. Os EUA tornaram-se, com o tempo, o maior mercado consumidor de café do mundo, e o Brasil surgiu como seu principal fornecedor, criando uma relação de interdependência em que a xícara diária do americano depende do trabalho de milhares de brasileiros no campo. O que parecia apenas uma mudança de gosto passou a ser um vínculo estrutural entre duas economias.
Política de intervenção
No começo do século XX, a crise de preços provocada pelo excesso de oferta levou os principais estados produtores brasileiros a buscar uma solução política. Em 1906, o Convênio de Taubaté, referendado pelos governadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, inaugurou a política de valorização do café: os governos assumiriam empréstimos externos para comprar excedentes, reter parte da safra e sustentar as cotações internacionais.
Tratava-se, nas palavras de estudiosos do tema, da primeira grande política de intervenção estatal na cafeicultura, destinada a preservar lucros e estabilidade.
A medida teve efeitos imediatos: conteve a queda de preços, evitou uma crise mais aguda no setor e preservou empregos em regiões inteiras dependentes do café. O custo, porém, veio na forma de forte endividamento externo e de recursos públicos desviados de outras áreas para sustentar estoques e compromissos financeiros assumidos em nome da valorização.
Relatórios históricos apontam que, a longo prazo, o plano fracassou em sua ambição de controlar o mercado mundial, justamente porque o Brasil não detinha monopólio sobre a produção.
Sinais de descontentamento
Mais de um século depois, o café voltou ao centro de uma política econômica com forte conteúdo político: a tarifa anunciada por Trump sobre exportações brasileiras, acompanhada de uma sobretaxa específica para produtos agrícolas como café, carnes e frutas.
O pacote atingiu em cheio um setor no qual o Brasil é líder global, enquanto os Estados Unidos são grandes consumidores e quase não produzem a commodity.
A justificativa oficial da Casa Branca combinou discurso de correção de injustiças no comércio com queixas sobre decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro e sobre o ambiente regulatório no país, num contexto de conflitos envolvendo liberdade de expressão e atuação de big techs.
Ao mesmo tempo em que buscava satisfazer uma base eleitoral sensível ao discurso de firmeza contra parceiros comerciais, o governo americano usava as tarifas como instrumento de pressão geopolítica e sinalização de descontentamento com a política interna brasileira.
A eficácia política de medidas desse tipo, porém, encontra limites na realidade econômica. Com o avanço da inflação de alimentos e bebidas, a tarifa adicional sobre o café e outros produtos brasileiros começou a pressionar diretamente o bolso do consumidor americano e a margem de redes de cafeterias, supermercados e restaurantes. Em um país acostumado ao café abundante e relativamente barato, a alta de preços associada a decisões de Washington se converteu em custo eleitoral para o próprio governo Trump.
Diante desse cenário, a Casa Branca recuou parcialmente: em novembro, Trump retirou a sobretaxa de 40% sobre o café e outros produtos agrícolas brasileiros, em medida com efeito retroativo, mantendo apenas a estrutura tarifária geral de 10% estabelecida anteriormente. Análises indicam que o fator decisivo foi a combinação de inflação alta, pressão de setores empresariais e risco político interno.
Instrumentos de força
O paralelo entre Taubaté e o “tarifaço” é revelador. Em ambos os casos, governos usam instrumentos de força — subsídios internos ou tarifas externas — para atender interesses específicos, sacrificando o princípio de mercados mais livres, com regras previsíveis e respeito a contratos.
As distorções produzem ganhos de curto prazo para segmentos organizados, mas geram custos difusos para a sociedade: inflação, insegurança jurídica, perda de competitividade e queda de confiança na estabilidade do ambiente de negócios.
Do ponto de vista brasileiro, o episódio recente reforça a necessidade de uma agenda que combine responsabilidade fiscal, segurança institucional e abertura comercial gradual, em vez de depender de favores ou humores de governos estrangeiros ou nacionais.
A força do agronegócio, seja aqui ou fora, resulta menos de políticas de proteção e mais da capacidade de inovar, aumentar produtividade e conquistar mercados em ambiente de competição, desde que o Estado garanta infraestrutura, contratos respeitados e estabilidade regulatória.
Medo silencioso
Na xícara de café que chega à mesa do brasileiro ou do americano estão condensadas decisões sobre quanto espaço dar ao Estado, até onde vai a liberdade econômica e qual o preço político do protecionismo.
Da reação ao chá tributado em Boston ao intervencionismo de Taubaté e às tarifas de Trump, a mesma fruta exportada pelo Brasil serve de fio condutor para mostrar que a tentação de usar o comércio como arma de poder nunca desapareceu; apenas mudou de forma.
No fim das contas, o que preocupa menos é o exercício de análise econômica e mais a ideia de que alguém que gosta de encerrar o almoço com um bom espresso, bem tirado, possa ter de começar a pensar se a próxima xícara vai caber no orçamento.
Talvez o sinal mais claro de que a política econômica esteja no caminho errado seja justamente esse medo silencioso de que, um dia, o espresso deixe de ser um hábito corriqueiro e passe a ser tratado como extravagância em um país que planta, colhe e exporta café como poucos no mundo.
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